sábado, 22 de fevereiro de 2014

Ensinei meninas cegas a dançar balé clássico

A fisioterapeuta Fernanda Bianchini venceu preconceitos e criou um método de ensino da dança para bailarinos que não enxergam

EM DEPOIMENTO A MARGARIDA TELLES
"Aprendi com meus pais a importância de fazer trabalhos voluntários. Quando tinha 15 anos, eu costumava visitar o Instituto de Cegos Padre Chico, em São Paulo. Muitas vezes, ia de cabelo preso em um coque, logo depois das aulas de balé, pois danço desde os 6 anos de idade. Uma das freiras que trabalhavam no instituto me viu e disse que eu tinha uma postura bonita, por causa da dança. Ela então comentou que as meninas cegas muitas vezes ficam curvadas, por não se ver no espelho. Perguntou se eu ensinaria balé a elas. Fiquei em dúvida. Ainda me considerava insegura para ensinar um grupo de meninas tão especiais. Conversei com meus pais, e eles me aconselharam a nunca dizer não a um desafio, porque é deles que vêm os maiores ensinamentos. Pensando nessas palavras, aceitei.

Minhas professoras de balé me desencorajaram. Disseram que era relativamente fácil ensinar expressão corporal a crianças cegas. Mas que meninas sem o referencial do espelho para imitar não conseguiriam aprender os movimentos do balé clássico, que envolvem precisão e rigor. Mesmo assim, não desisti. Na primeira aula, achei que encontraria as alunas de coque e sapatilha. Elas estavam de calça jeans e cabelo solto. Nem sabiam na verdade o que era balé. Para começar, tentei lhes ensinar um passo básico, o échappé sauté, que consiste em saltar abrindo e fechando as pernas. Para isso, pedi que imaginassem que saltavam dentro de um balde. Uma das meninas disse: “Tia, como é um balde? Nunca vi um”. Aí percebi que precisava primeiro entrar no mundo do deficiente visual e entender suas dificuldades, para então introduzi-las ao balé clássico.


Fiquei oito anos no Padre Chico, mas lá só podia dar aulas às crianças que fossem da instituição. Então, fundei uma entidade própria (a Associação de Balé e Artes para Cegos Fernanda Bianchini) e adotei objetivos mais amplos. Hoje, temos 100 alunos. Cerca de 60 são deficientes visuais. Tenho turmas também de cadeirantes, deficientes mentais e crianças que não são deficientes e fazem a inclusão às avessas. Nestes 18 anos, fiz muitos “nãos” se tornarem “sim”. No começo, a resposta das pessoas era bem negativa, sobretudo no universo do balé profissional. Se você parar para pensar, a bailarina tem de ser bonita, magra, rica, porque tudo é caro. Quando eu queria inscrever as meninas em algum evento, as pessoas não topavam, porque achavam que bailarinas cegas só conseguiriam dar dois passos para lá, dois para cá ou que cairiam do palco. Não é isso que acontece. Tem gente que, depois de ver as apresentações, não acredita que elas não enxergam. As meninas dançaram nas Paraolimpíadas em Londres, em 2012, ao lado dos bailarinos do Royal Ballet. Foi incrível. Mas ainda enfrento muitos desafios.Aos poucos e na base da tentativa e erro, desenvolvi um método com base na percepção corporal. Entendi que elas precisavam tocar meu corpo, sentir cada detalhe, para que depois pudessem repetir. Tive dificuldade para desenvolver uma metodologia que as tornasse bailarinas completas. Elas sentiam o movimento de minhas pernas e reproduziam. Os saltos, eu ensinava ao contrário, deitada no chão. Mas não conseguia ensinar o movimento dos braços, que tem toda aquela leveza, aquela suavidade. Quando tinha 18 anos, sonhei que dançava, mas no lugar dos braços tinha duas folhas de palmeiras conectadas ao meu corpo.  Quando acordei, vi que ali estava minha solução. O movimento do vento na folha de palmeira era semelhante ao dos braços que eu queria ensinar às bailarinas. Levei algumas folhas de palmeira para a aula. Prendi as folhas nos braços das alunas. Elas tinham de se movimentar respeitando os movimentos dos caules, com suavidade. Foi muito bonito e deu certo. Acho que Deus sempre esteve muito presente e, naquele momento, me deu um toque para não desistir. Fiz uma tese de mestrado sobre meu método de ensino em 2005 e hoje dou cursos para professores de balé.

No Brasil, o reconhecimento é menor. Tenho poucos patrocinadores e, em alguns meses, preciso manter a associação com dinheiro do meu bolso, do meu marido ou dos meus pais. Além de cuidar da instituição, sou fisioterapeuta e tenho minha clínica. Trabalho dobrado, mas não abro mão disso por nada. Quero que a sociedade respeite as bailarinas cegas pela qualidade de seu trabalho, e não que as vejam como coitadinhas, porque elas não são."

Nenhum comentário:

Postar um comentário